sexta-feira, 19 de junho de 2015

O Valor dos Inúteis



Por coincidência ou não, as minhas duas últimas leituras (são os livros das duas últimas resenhas, 'O castelo das águias' e 'O idiota') refletiram bastante em pensamentos que venho tendo há uns bons dois anos, e ambos me incentivam a seguir a minha visão inicial sobre um determinado assunto: personagens. No meu comentário sobre OCDA, apontei a quantidade de personagens e a dificuldade de me situar em meio a tantos que não se relacionavam diretamente com a trama - apesar de achar o modelo de construção impecável, sob a perspectiva de criador. Tanto é que eu mesmo fiz a mesma coisa em 'O homem sem signo'; não é difícil ver leitores que acharam complicada a trama abarrotada de gente, ou até os chamando de inúteis - e no início eu ficava tentado a argumentar com os leitores, tentando mostrar a função dos tais personagens no livro, ainda que o papel deles fosse mínimo no enredo principal. 


De fato, esta percepção me deixava tão incomodado, na época, que o livro seguinte, 'A pedra celestial', foi montado de maneira oposta. A ideia geradora da sequência já tinha como base ser uma obra mais voltada para o gosto do público leitor de fantasia brasileiro, e cada criação nova era aplicada no roteiro de maneira a atender as demandas desta classe demográfica, então a decisão de retirar o contingente caiu como uma luva. Como autor independente, e pela proposta que tive na minha inserção no mundo da escrita de fantasia, também era válido transformar a minha escrita, pois este é o objetivo principal da 'Trilogia A lança dourada', exercitar minha escrita de formas variadas num contexto ficcional fantástico. E deu certo: APC é um livro muito mais elogiado, as leitoras, especialmente, demonstraram um apego com a história praticamente inédito, e aqui estou eu me questionando sobre o desenvolvimento do terceiro livro da saga.

O estilo de escrita do terceiro livro será uma combinação de elementos de OHSS e APC mais algumas coisinhas que aprendi com o feedback dos leitores dos dois livros. Uma das coisas é a criação de personagens, e no último livro seguirá o modelo do primeiro. É mais complicadinho, pode gerar revoltas, mas é o que eu considero correto. Não quero menosprezar a opinião de quem leu e amou APC, pelo contrário, não há presente melhor para um escritor que ver seu texto apreciado, mas assim é a arte, precisa ser genuína. O terceiro livro vem aí, e vai vir muita gente com ele!


Antes de ir, acho de bom tom deixar aqui o trecho de 'O idiota' que faz menção à questão de função dos personagens na narrativa, tendo de certa forma uma mensagem consonante com a estrutura encontrada em OHSS e OCDA. Acho que é mais recomendável fazer isso que indicar a leitura do livro inteiro, especialmente após eu tê-lo criticado tanto (mas Dostoiévski continua sendo amor, SEMPRE!). Esta passagem se encontra no primeiro capítulo da quarta parte do livro.


"Todavia a pergunta fica de pé: que fará um autor com gente comum, absolutamente “comum”, e como há de colocá-la diante do leitor tornando-a interessante? É de todo impossível deixá-la fora da ficção, pois essa gente do lugar-comum é, a todo momento, o principal e indispensável anel da cadeia dos negócios humanos. Se os deixarmos de fora perdemos toda a verossimilhança com a realidade. Encher uma novela completamente só com tipos, ou melhor, querer torná-la interessante mediante apenas caracteres estranhos e incríveis será querer torná-la irreal e até mesmo desinteressante. A nosso ver, um escritor deve procurar a torto e a direito enredos interessantes e instrutivos mesmo entre gente vulgar; Quando, por exemplo, a natureza mesma de certas pessoas vulgares reside justamente em sua perpétua e invariável vulgaridade, ou melhor ainda, quando, apesar de todos os mais estrênuos esforços para fugir à órbita da mesmice e da rotina, essa gente acaba por se sentir invariavelmente ligada para sempre a essa mesma rotina, então tal gente adquire um caráter sui generis, todo seu, o caráter da vulgaridade, desejosa acima de tudo de ser independente e original sem a menor possibilidade de o conseguir.
A essa classe de gente “vulgar” ou “comum” pertencem certos personagens da minha narrativa que até aqui, devo confessar, foram insuficientemente explicados ao leitor".



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