sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Impressões: O espadachim de carvão, de Affonso Solano

Começando o ano com uma resenha de autor nacional! 2016 promete!
Vamos à capa, sinopse e minhas impressões, sem enrolação. 




KURGALA É UM MUNDO abandonado por Quatro Deuses. Adapak é filho de um deles. E agora ele está sendo caçado. Perseguido por um misterioso grupo de assassinos, o jovem de pele cor de carvão se vê obrigado a deixar a ilha sagrada onde cresceu e a desbravar um mundo hostil e repleto de criaturas exóticas. Munido de uma sabedoria ímpar, mas dotado de uma inocência rara, ele agora precisará colocar em prática todo o conhecimento que adquiriu em seu isolamento para descobrir quem são seus inimigos. Mesmo que isso possa comprometer alguns dos segredos mais antigos de Kurgala.


Essa foi uma das histórias que mais enrolei para ler em 2015, apesar de sempre levantar o olho para as várias menções feitas a ele na internet. Por isso, quando entrei em Kurgala já sabia mais ou menos o que esperar, em se tratando de como o autor trabalhou sua história. E eu, esperando o inesperado que todos alardeavam em suas resenhas, o encontrei. O autor toma o caminho inteligente de formar um mundo de fantasia que é só seu, e a jornada desbravadora do leitor se torna muito mais genuína, sem orcs, vampiros ou quaisquer figuras ficcionais que já povoam o imaginário do acostumado com livros de fantasia. Kurgala é, para início de conversa, um mundo novo. Isso agrada por um lado, mas cria dificuldades por outro.

O enredo é simples, a sinopse não foge muito do que a história trata do começo ao fim: um rapaz de 18 anos ingênuo (até demais, na maioria das vezes) fugindo de perseguidores e conhecendo personagens e lugares durante sua busca para saber o motivo de estar sendo caçado. Sem surpresas por aqui. Da narrativa, entretanto, há muito o que falar. É não linear - intercalando a fuga de Adapak com flashbacks que apresentam pessoas e interações entre personagens - e bastante fluída, facilitando o entendimento e empregando velocidade à leitura. Porém nem tudo é um mar de rosas, a narrativa peca em alguns momentos, por má construção de frase e estilo ou mesmo pela voz narrativa, que foi prejudicada pela estranheza absoluta de Kurgala. Eis alguns exemplos:


"Jarkenum dormia profundamente na cama ao lado, banhado pela iluminação parca que a pequena janela alta da cela"

"O sol da manhã dava boas-vindas aos três ocupantes do veículo, que rumavam para a grande ilha central"

"Um cinzeiro de barro jazia virado no chão, espalhando cinzas nunca varridas"

"O vento salgado do mar não era forte o suficiente para afastar completamente o cheiro de morte"

"Você é uma verdadeira peça mesmo, garoto. Eu não sei como são as coisas na “terra das pessoas de carvão” – ele debochou, fazendo aspas com os dedos"

"Temos que subir! – o espadachim gritou para o humano de cabelos longos, que estava vidrado no fenômeno. – Essa coisa vai nos engolir!!!"

"dobrando e redobrando a coluna violentamente, como um peixe sufocando fora d’água"

"EM SEUS BREVES 4 ciclos de vida, Adapak só havia conhecido uma caverna antes, quando Barutir Ob o levou para caçar capingus próximo às cachoeiras de Thal, oito meses atrás"

"pois o dinheiro da venda não duraria mais de dois anos, parece"

As primeiras quatro citações demonstram trechos que poderiam ser melhor trabalhados. A primeira é uma sentença simples, porém alongada por adjetivos e advérbios que não acrescentam relevo à escrita. A segunda tem um aposto mal colocado, que não está incorreto, mas provoca estranhamento na conjugação do verbo. As duas seguintes são frases mal feitas: cinzas derramadas no chão claramente nunca foram varridas, e o "cheiro de morte" seria afastado "por completo" por um vento "forte o suficiente"? Esquisito.
As cinco citações seguintes foram mais graves para mim, pois comprometem a própria coerência de Kurgala e do narrador. Como pode um mundo totalmente novo, com escrita diferente, linguagem diferente, colocar o gesto de aspas para simbolizar ironia? Ou mesmo usar a gíria "vidrado"? E, ainda mais, citar peixes tão despreocupadamente? Será que o narrador se subtraiu de Kurgala e veio para a Terra nos contar a história? Nas duas últimas citações, vemos o sistema de contagem de tempo, com ciclos substituindo anos, se confundir com a menção a meses e (olhe só!) anos. A empreitada tão ambiciosa de inovar tudo na construção de mundo poderia ter sido mais criteriosa na revisão; esses últimos erros são graves.

As descrições são muito boas, mas descompassadas com o ritmo da história. Em certos momentos, informações novas são adicionadas ao fim de uma cena, causando certa frustração com o leitor e sua imaginação. Acontece tanto com cenários quanto com personagens de fisiologia fictícia, e é mais prejudicial no último caso:

"Eles eram humanos de pele bege variando entre 30 e 40 ciclos de idade, vestindo armaduras justas de couro castanho-escuro e sem insígnias. Tinham rostos marcados pela vida bruta, com olhos acostumados à violência"

Aqui a descrição é satisfatória para descrever personagens genéricos, não há o que acrescentar, mas essa mesma vaguidão é aplicada para descrever raças imaginadas, e aí mesmo o personagem mais genérico precisa de detalhes. Na primeira cena do livro, Adapak luta contra inimigos com descrições vagas, e peças cruciais da luta são mostradas como um faz de conta pueril, descrevendo novos membros e armas no momento em que são usados/atingidos. Esses golpes, por mais precisos que sejam, Adapak, são decepcionantes para o leitor. Um simples infográfico desenhando as raças de Kurgala bastaria no começo do livro.

Os personagens são poucos e memoráveis (ainda que seus nomes não sejam), com trejeitos e maneiras particulares de falar, o que serve de força motriz para a aventura e prende o leitor no ótimo ritmo do livro.O destaque fica com Adapak, não há tempo nem dinâmica que possa desenvolver os demais.

O que gostei:
- Linguagem direta, fluída e com bom ritmo.
- Estrutura não linear do enredo.
- Personagens.
- Ambientação e criação do mundo.

O que não gostei:
- O itálico tem várias funções na escrita do livro, e causam confusão pela padronização, que podia ser esclarecida com o uso de aspas ou hífen em alguns de seus usos.
- A confusão do narrador que não se manteve estritamente em Kurgala, prejudicando a suspensão de descrença.
- Nomes bizarros de personagens, raças, lugares e tudo mais.
- A ingenuidade de Adapak é irritante, às vezes.

Considerações finais:
Mesmo com as ressalvas, O espadachim de carvão conseguiu me prender do começo ao fim, sem entraves e com uma narrativa despretensiosa que me deixou interessado, junto a Adapak, pelos mistérios de Kurgala, tanto os urbanos e corriqueiros quanto os secretos e ancestrais.





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