terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Impressões: O andarilho das sombras, de Eduardo Kasse

A segunda leitura do ano é cruel e sanguinolenta: O andarilho das sombras, do autor Eduardo Kasse. Vamos à capa e sinopse:





No romance O Andarilho das Sombras, primeiro volume da série Tempos de Sangue, Eduardo Kasse conta uma história instigante de como escolhas e uma promessa maliciosa criaram um grande mal.
Para salvar a vida de quem amava, Harold Stonecross sacrificou sua alma em um jogo de poder entre deuses decadentes e se tornou um demônio em busca de sangue.
Nesta fantasia sombria, entre lendas esquecidas, dogmas e mitos, Harold narra passagens de sua longa existência, repletas de conexões com tempos imemoriais, enquanto caminha pelas ruelas escuras e imundas da Europa da Idade das Trevas.
Sedutor e fatal, Harold fez do mundo o seu palco. Em sua atuação, a História escrita pelos homens confunde-se com as histórias de terror contadas pelos mais velhos. Nobres, sacerdotes, homens comuns, não importa: sempre haverá um rastro de sangue após as cortinas baixarem.


A sinopse é bem temática, e o pouco da trama que ela revela é condizente com a história do livro, apesar de ser só um raspão na longa jornada de Harold Stonecross. A verdade é que acompanhamos as vidas de dois Harolds, um é o vampiro de características clássicas, sustentadas pelos pilares do mito original, o outro é um humano comum, que cresce, teme, chora, ri e vive como todos os outros. As narrativas são contadas de maneira linear, entrelaçadas por sutis mudanças de espaço e tempo, e acaba sendo um bom exercício de percepção para o leitor; seguir o rastro de sangue de Harold se torna mais divertido quando temos os flashbacks mostrando o crescimento do esperançoso Harry. A seguir deixo um exemplo de retomada da linha de tempo do vampiro, após uma seção contando parte da vida do garoto Harry:

"Cavalguei por algumas milhas e longe no horizonte surgiu uma muralha de terra e de pedra. Cidades muradas costumavam ter boas casas para se alugar ou mesmo para comprar. Depois de dormir em uma carroça e em uma cabana, ter algo mais sólido seria ótimo."

Para ajudar o leitor, o parágrafo informa que antes da interrupção houve longa cavalgada e que Harold dormiu em uma carroça e depois em uma cabana, o que é suficiente para lembrar o leitor em que pé estava a história.

A narração é em primeira pessoa e as duas linhas de tempo são narradas no passado, o que gerou algumas dúvidas na minha leitura, como por exemplo a ampla percepção do narrador aos eventos que ocorrem ao redor de si, mesmo quando ele ainda não era um vampiro com sentidos super aguçados, mas nada que atrapalhe a coerência da história ou fluidez do texto. As cenas são muito longas, no geral, e OADS não é um livro para se ler picotado em viagens de ônibus ou metrô, exige dedicação e tempo livre, mesmo a quem decide ler um capítulo por vez. Isso se deve ao tamanho da história, mas também ao belíssimo trabalho descritivo, que não é massante, porém repito: é quase sempre longo. Um exemplo simples de como um parágrafo sucinto de Eduardo Kasse pode explicar muita coisa:

"Os quatro garotos correram sem olhar para trás, escorregando nas ruas cobertas pelo barro úmido devido ao dia chuvoso. Ao chegar à frente do torreão da face leste da muralha, Edgar e o garoto de nariz torto seguiram para um beco ao lado da taverna St. Mary. O gorducho, com passos curtos e pesados, entrou em uma velha casa nos fundos de uma pequena igreja de pedra e madeira, dedicada a São Eduíno."

Como o texto mostra, a linguagem de Eduardo é direta e sem firulas rebuscadas, uma boa escolha para dar agilidade a textos densos. Nem por isso ele exclui a linguagem figurada, e às vezes nos deparamos com belas passagens, como a seguir:

"Se cada lágrima chegar ao céu, esse já virou um mar."

Os personagens dão o tom na narrativa, se estamos com Harold, as sombras e a perdição noturna domina, se estamos ao lado de Harry, há mais aventura e indecisão; mas, em ambos os casos, predomina o exagero e as grandes expressões na delineação de personagens. A sensualidade transborda, o medo engole, a feiura enoja, a beleza enaltece. Tudo é puxado ao máximo nas características, e se o leitor não percebe isso de imediato, pode ficar frustrado mais para frente com a caracterização, e achar até estereotipado. É importante ver também que mesmo a fase de Harry é narrada pelo Harold que sucumbiu, então nem os momentos amenos do livro dispersam a atmosfera negativa que o vampiro nos impõe. A impressão que fica é estar lendo algo inspirada na segunda geração romântica da literatura brasileira.

Apesar das longas passagens, eu não via como criticar o ritmo até chegar na metade da leitura. Foi o ponto em que já estava cansado de acompanhar o vampiro insosso que nada teme e sofre além da própria lamentação pela imortalidade. Para minha sorte, o jovem Harry aparece mais na segunda metade do livro e não precisei dar um tempo na leitura, mas, ainda assim, me cansava ao ver novamente menções a coração imortal e seios intumescidos de jovens vítimas. Ficou muito repetitivo e modorrento acompanhar o vampiro Harold, e só bem no final do livro é que a linha do tempo dele retoma algum brilho (talvez tarde demais).

O que gostei:
-Linguagem que prende o leitor.
-Ótimas descrições.
-As linhas de tempo intercaladas foram bem estruturadas.
-Gostei da grande quantidade de personagens e do papel deles no enredo.
-A ambientação é o ponto forte do livro. Para quem gosta de vampiros tradicionais, é uma leitura recomendada.

O que não gostei:
-A vida de Harold enquanto vampiro se torna desinteressante.
-A visão negativa de Harold impregnou a narração da linha de tempo pré-renascimento, deixando os momentos divertidos do livro com uma pontinha de chatice.
-A unidimensionalidade  da maioria de personagens é quase que aplicada a classes. Todo o clero é corrupto, todo camponês é simplório, toda mulher é uma presa sensual para Harold. Entendo a função disso na trama, mas gerou previsibilidade.
-Deus Ex Machina ABSURDO  no final do livro para salvar o herói que não é herói coisa nenhuma.

Considerações finais:
Com um trabalho literário excepcionalmente bem feito, mas que se alongou demais e se repetiu algumas vezes, Eduardo Kasse inicia sua saga vampírica de forma densa. O andarilho das sombras é fruto de um trabalho lapidado e traça uma linha reta mostrando o que é e para onde vai; quem se identifica com a direção, poderá ler sem medo de se decepcionar.







Um comentário:

  1. Obrigado pelas impressões, pelas experiências e pela divulgação!! Grande abraço cara. Fica bem!

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